quinta-feira, 19 de novembro de 2009

nêga

Negras sempre fomos, como todo homem, que por ser homem, veio da África. 
Mas é a nós que é pedida a macheza de ter uma bunda e andar com ela por aí, nas igrejas, nos supermercados, nas escolas, nas rodas. Porque nós, as negras, desde meninas, temos sido carne de saciar fomes que não são nossas. Dos parentes aos patrões. 
A eles damos nosso riso ambíguo, de nervosismo, tensão, o deboche diante de toda a merda em que se convertem sobre os altares em que declaram que um dia irão mentir e trair. A traição que conheceram com a posse, aqui chamada infidelidade, independentemente de partido ou desejo. A traição que é anterior ao nome de Judas, de quem não a cometeu: a traição da própria liberdade.
Nada além de que ser deveria se esperado do que ainda não está pronto e que se faz, como tudo, no decorrer das coisas e dos afetos. 
E pela invenção do amor, vieram os cães. Eles permitem que acreditemos em nossa capacidade de amar. E por ser frágil a capacidade de amor dos homens, em sua maioria, não confiam em gatos, gatos não se traem. Coleira que segura Luma não me prende Eike.
E como minha carne veio barato, somente à custa de humilhações e agravos acumulados durante os séculos, nada impede que um negro, que instruía na sabedoria dos negros, dizer: que delícia, assim até eu vou querer um pedaço. Pedaço de que? 
E em alguns momentos os homens se tornam cegos, não podem nos ver... Perdidos que são na construção de uma mulher feita por cosméticos e dietas, não poderiam lidar com uma mulher que caminha livremente, sem mão de dono que a conduza e que, mesmo em sua timidez de carne entre famintos, não se preserva nas páginas das folhinhas e delas não segue receitas, nem de bons modos, nem de bolo e nem de sexo. 
E se nos homens brancos ainda resiste o olhar de sinhozinho, nos homens negros ainda há o arroubo do reprodutor e a ele também se deve agradecer por não faltarem braços e meninas ao patrão da vez. 
E por isso sigo incompleta, porque desejo um homem que seja capaz de me comer inteira e não aos pedaços. A minha bunda é só uma parte de um corpo que é só uma parte de mim. A parte com prazo de validade. E isso já seria motivo mais que suficiente para que eu não faça reservas e me deixe devorar sem restrições. A todos que têm fome de mim, me dou, mas só aos que têm paladar e estômago para conhecer meu gosto, pertenço. 
Comer todos podem. Digerir, só alguns. Minha doçura é veneno e o que em mim foi sustento, intoxica quem com a boca me feriu. Carne de peixe e cobra que poucos conseguem comer e gozar em seu gosto porque o gosto das coisas é muito além do que foi imaginado. E de mim não dou pedaço a ninguém e quem tem direito não pede, só toca, desfazendo o intransponível de mim, o que não mais existe mais. E nem mim existe. Nem eu. Só o que há é o respirar das coisas, o arfar do gato, dormindo por três dias, depois de quatro sem que dele se tivesse notícia além de que a Lua se mostrava inteira. O sono profundo após noites seguidas existindo. Sendo, os gatos têm muito mais do que sete vidas. E que pedaço de um gato seria pedido por quem o desejasse? Eu quero o pedaço da leveza e com ele transitar pelo ordinário das coisas sem sofrer por não ter a surpresa de que hoje não sejam melhores do que foram ontem. 
Tudo é o que sua espécie e seus sonhos lhe permitem ser. Os homens são os homens e os limites dos homens são os limites dos homens e, se não pode ser ofensa o desejo do homem, ofensa é sua fraqueza, a sua digestão delicada da realidade da vida. E se o comum de tudo não é motivo para que ninguém se ofenda, por que ofenderiam ao deus masculino os pecados das mulheres? O pecado de não se saciarem apenas com um pênis e que delas, seu filho homem, tivesse conhecido a entrega. 
A mim encantam os pênis, mas nenhum conheci rijo e vigoroso o suficiente para que meu mundo se alicerçasse sobre ele. Não podem suster a si mesmos sozinhos e para sua glória surge a indústria com os produtos de carne e osso. E venderiam suas filhas por este prazer. O sorrateiro e todas as sombras que lhes impeçam olhar atentamente e reconhecer, no mesmo rosto de mulher, as três tecelãs. Necessitam dos entretenimentos eróticos, corpos femininos, imagens e tudo o que lhes possibilite a contemplação do falo por que, no dia-a-dia, nenhum deles sustentaria um dizer, em força e virilidade, ao lado de uma mulher. 
Todos se mostram, inevitavelmente, sem máscaras, no auge de seus 12 anos, talvez ainda por completar. Precisam pular aqui e ali, se afirmar, se impor e, pra isso, precisam de muito, em muitas, para que não se confrontem com o tão pouco que têm a oferecer. 
Feminina e feminista também concluo que meu melhor movimento é sem dúvida o de quadril, e o movendo, os atinjo com o pé e digo que só o que existe é o ainda não inventado.Todo o resto se tornam os próprios homens. 
E por isso crio e recrio. Os modelos não se conservam inteiros, todos muito frágeis, como seus pênis, testículos e imaginação. E só por ser mulher os recebo, aberta. Os acolho e me deixo penetrar por seus pedaços com que procuro construir um homem inteiro, a espera de admirar sua força e seu caráter. 
E  verdadeiramente sinto e lamento que pelo vislumbre do limite, pela forma de um corpo não  se contenham e se afoguem, ainda no raso de mim. E nade quem sabe e pode a procura de saída porque o mundo habitado pelos homens se torna cada vez menor.