quinta-feira, 19 de novembro de 2009

nêga

Negras sempre fomos, como todo homem, que por ser homem, veio da África. 
Mas é a nós que é pedida a macheza de ter uma bunda e andar com ela por aí, nas igrejas, nos supermercados, nas escolas, nas rodas. Porque nós, as negras, desde meninas, temos sido carne de saciar fomes que não são nossas. Dos parentes aos patrões. 
A eles damos nosso riso ambíguo, de nervosismo, tensão, o deboche diante de toda a merda em que se convertem sobre os altares em que declaram que um dia irão mentir e trair. A traição que conheceram com a posse, aqui chamada infidelidade, independentemente de partido ou desejo. A traição que é anterior ao nome de Judas, de quem não a cometeu: a traição da própria liberdade.
Nada além de que ser deveria se esperado do que ainda não está pronto e que se faz, como tudo, no decorrer das coisas e dos afetos. 
E pela invenção do amor, vieram os cães. Eles permitem que acreditemos em nossa capacidade de amar. E por ser frágil a capacidade de amor dos homens, em sua maioria, não confiam em gatos, gatos não se traem. Coleira que segura Luma não me prende Eike.
E como minha carne veio barato, somente à custa de humilhações e agravos acumulados durante os séculos, nada impede que um negro, que instruía na sabedoria dos negros, dizer: que delícia, assim até eu vou querer um pedaço. Pedaço de que? 
E em alguns momentos os homens se tornam cegos, não podem nos ver... Perdidos que são na construção de uma mulher feita por cosméticos e dietas, não poderiam lidar com uma mulher que caminha livremente, sem mão de dono que a conduza e que, mesmo em sua timidez de carne entre famintos, não se preserva nas páginas das folhinhas e delas não segue receitas, nem de bons modos, nem de bolo e nem de sexo. 
E se nos homens brancos ainda resiste o olhar de sinhozinho, nos homens negros ainda há o arroubo do reprodutor e a ele também se deve agradecer por não faltarem braços e meninas ao patrão da vez. 
E por isso sigo incompleta, porque desejo um homem que seja capaz de me comer inteira e não aos pedaços. A minha bunda é só uma parte de um corpo que é só uma parte de mim. A parte com prazo de validade. E isso já seria motivo mais que suficiente para que eu não faça reservas e me deixe devorar sem restrições. A todos que têm fome de mim, me dou, mas só aos que têm paladar e estômago para conhecer meu gosto, pertenço. 
Comer todos podem. Digerir, só alguns. Minha doçura é veneno e o que em mim foi sustento, intoxica quem com a boca me feriu. Carne de peixe e cobra que poucos conseguem comer e gozar em seu gosto porque o gosto das coisas é muito além do que foi imaginado. E de mim não dou pedaço a ninguém e quem tem direito não pede, só toca, desfazendo o intransponível de mim, o que não mais existe mais. E nem mim existe. Nem eu. Só o que há é o respirar das coisas, o arfar do gato, dormindo por três dias, depois de quatro sem que dele se tivesse notícia além de que a Lua se mostrava inteira. O sono profundo após noites seguidas existindo. Sendo, os gatos têm muito mais do que sete vidas. E que pedaço de um gato seria pedido por quem o desejasse? Eu quero o pedaço da leveza e com ele transitar pelo ordinário das coisas sem sofrer por não ter a surpresa de que hoje não sejam melhores do que foram ontem. 
Tudo é o que sua espécie e seus sonhos lhe permitem ser. Os homens são os homens e os limites dos homens são os limites dos homens e, se não pode ser ofensa o desejo do homem, ofensa é sua fraqueza, a sua digestão delicada da realidade da vida. E se o comum de tudo não é motivo para que ninguém se ofenda, por que ofenderiam ao deus masculino os pecados das mulheres? O pecado de não se saciarem apenas com um pênis e que delas, seu filho homem, tivesse conhecido a entrega. 
A mim encantam os pênis, mas nenhum conheci rijo e vigoroso o suficiente para que meu mundo se alicerçasse sobre ele. Não podem suster a si mesmos sozinhos e para sua glória surge a indústria com os produtos de carne e osso. E venderiam suas filhas por este prazer. O sorrateiro e todas as sombras que lhes impeçam olhar atentamente e reconhecer, no mesmo rosto de mulher, as três tecelãs. Necessitam dos entretenimentos eróticos, corpos femininos, imagens e tudo o que lhes possibilite a contemplação do falo por que, no dia-a-dia, nenhum deles sustentaria um dizer, em força e virilidade, ao lado de uma mulher. 
Todos se mostram, inevitavelmente, sem máscaras, no auge de seus 12 anos, talvez ainda por completar. Precisam pular aqui e ali, se afirmar, se impor e, pra isso, precisam de muito, em muitas, para que não se confrontem com o tão pouco que têm a oferecer. 
Feminina e feminista também concluo que meu melhor movimento é sem dúvida o de quadril, e o movendo, os atinjo com o pé e digo que só o que existe é o ainda não inventado.Todo o resto se tornam os próprios homens. 
E por isso crio e recrio. Os modelos não se conservam inteiros, todos muito frágeis, como seus pênis, testículos e imaginação. E só por ser mulher os recebo, aberta. Os acolho e me deixo penetrar por seus pedaços com que procuro construir um homem inteiro, a espera de admirar sua força e seu caráter. 
E  verdadeiramente sinto e lamento que pelo vislumbre do limite, pela forma de um corpo não  se contenham e se afoguem, ainda no raso de mim. E nade quem sabe e pode a procura de saída porque o mundo habitado pelos homens se torna cada vez menor.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Entorpecimento literário

Como todas as outras substâncias, ajuda a ver de outra forma. E quando nos relacionamos assim com as coisas e pessoas nos tornamos donos do que a gente tem.

domingo, 11 de outubro de 2009

Sempre foi estranha e por isso a chamavam Sissy. Nunca soube ao certo dos detalhes de como tinha acontecido por medo, por que tendia aos pesadelos e buscava sonhos, o que a tornava ainda mais estranha e assustadora. Criança de quarta-feira, cheia de aflição e sorrindo.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Todas as vezes que ia ao banheiro se lembrava de quem era. E às vezes se sentava, em qualquer lugar, e pensava nas coisas até que o cachorro latisse. Mais cedo ou mais tarde o calor faria com que saísse. Havia o cheiro e o espelho. Trocaria os pelos por escamas e de novo era o que foi, ali, naquele lugar.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Rebeldia

Recuso-me aos sacrifícios.

Só ao que desejo pertence meu sangue e meu calor.

Sou ovelha, mas sou negra.

terça-feira, 28 de julho de 2009

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Folhas se soltando, muitas orelhas e manchas, muitas manchas. De tinta, de sujeira, do tempo passando. A poeira que encobre as coisas mas que também faz espirrar. E é pra isso que servem os descongestionantes, para que se possa fumar, dizer e apaixonar. Ao cansaço. Por quantos de nós cada um é? A força que infla o peito faz lembrar o atleticano de dois anos, que nem pombo, galo sote e zingador! No canto e no grito, tudo o que se é.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Dormiu pouco na noite anterior e já conhecia a sensação que se acentuava, mais desejosa a cada dia, à espera dos acontecimentos. Naquele dia o tempo estava bom, um calor gostoso mas que pouco valeu por conta do amuamento. Não havia dito nada. Movia-se, no mesmo princípio do dia em que completava as voltas que ainda daria, caso o planeta se acabasse num feriado. E naquele lugar, nos feriados, nada abria. Esperava que alguma coisa fosse dita logo cedo, que é melhor, pensava. Mas é diante da experiência que a linguagem se constrói, para os homens. Os seres de silêncio se conjugam em todos os tempos.

domingo, 12 de julho de 2009

Em algumas manhãs, todo o sentido da vida era molhar terra e sementes e receber o afago do gato, testemunha do mesmo milagre, não manchado pela intenção ou pela necessidade de se explicar. O mesmo gato que agora ouve um discurso sobre a importância de que tratamentos alopáticos não sejam interrompidos e sobre a eficiência de analgésicos e antibióticos. Por ter recebido afago sentia o peso de um amor que lhe abriria à força a boca, a despeito do vômito e da revolta, fazendo descer pela garganta o comprimido.

Violação de direitos

Sim, agora me detenho mais ao significado de ‘direito autoral’, ou ‘intelectual’, como dito em uma notificação. E penso que, para esses seres virtuais que somos, nada disso existe. O entendido de alguns pedaços desse mundo particular que é de todos, às 08h49min a.m, 12 de julho, de 2009, em que, ainda, o que torna possível e compreensível um sou, um poder ser, é o outro, o que, naquele momento ali estava dito, em 1987 e no antes. A inteligência é pedra em que as intelectualidades tropeçam e é na lei que não se infringe que existe o tombo. E quem será responsabilizado pelas infrações ao nosso direito de sentir? Alguns mudos, só o são, por serem surdos.
Voz: Nina Simone
Animação: Peter Lord

A luz oscila. Ainda a mesma das lamparinas, o cheiro fresco da noite e a maresia dos livros. A pele muda, ganha viço de cor retocada, essa arte de colorir. Assim foi feita. Afugentando sonhos e pesadelos. E de palavras.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Desorganização

Era o que disfarçavam as gavetas cuidadosamente limpas e arrumadas. As peças separadas por cores e circunstâncias. Cheirava bem.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Ausência de uma bóia

Porque se digo é com minha própria voz e minha fala é assim mesmo, estabanada e desajeitada. No fim só restará lembrança é dos braços, tanto que gesticulavam. Parecia afogamento.

A expectativa da morte. A de sempre. A de todo o tempo. O procedimento era banal, como ela, além de certa. E só por isso se preocupava um pouco. Sabia que não seria nada. Iria viver. Mas a dúvida nasce com a angústia do derradeiro e embaralha o juízo. No fundo sabia que não iria viver. Seria nada.

E noite digo. E embora sinta possível o feliz, como medicamento ao alcance da mão e, mais do que o fim, começo, com ele não sacio minha insatisfação. Certa noite ela veio, para buscar. Fez pirraça, demorando tanto... encontraria o caminho sozinha. Não quis ir? Pois que fosse, e se o querer mudasse de idéia, que voltasse. Mas ainda são necessárias essas paisagens de pobreza para que sejam cultivadas as farturas e não tornei a ver-lhes a sombra. Sobre os olhos ficou a poeira da rua, como fotografia, guardada no álbum de memórias em que se transformou todo o resto. E de novo o cão morria pelas mãos de quem o amava. E não poderia dizer já que a isso se dedicam os loucos e os que se calam. Imensurável é a liberdade da solidão e o monólogo da sua afirmação, escapado na tentativa de outro. E algumas vezes ela vem, feito cão magro, lambendo a mão com a lembrança de enxotar, ainda assim, ainda não. Restaria um destino de nome a cumprir e, por ser grama, não saberia ser junto ao que é suposição além de si. Toda a verdade que sabia era a da chuva, do sol e da vontade de brotar.

Os desejos permanecem por sua ausência e das impossíveis alegrias surge a de reconhecer rostos e rotas. Só saía do quarto depois de morta, enquanto cultivava paixões por personagens, o cavaleiro solitário, homem deprimido ao constatar a ansiedade dos de sua espécie em matar mais rápido e em maior quantidade. Só depois escreveriam mais rápido. E por amor digo que de nada serve à escrita a velocidade. Lenta e vagarosa, se destina ao depois de um já sido, acontece quando é tarde demais. Alinhavo de rupturas e esgarçamentos. E se escrevo é só por ter mãos e por, das coisas feitas pelos homens, sempre buscar as marginais. E amaldiçoados são todos os poetas porque no começo era a vogal, o grunhido, o susto em dizer. E em mim chuva sempre foi verbo. E sonho. E delírio.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Alimento dentro da cuia e com flor

Reação a que os corpos estão expostos, pelo contato com outros corpos, da mesma e das mais variadas espécies. Sim, como as gripes. Pneumonias, alergias, histerias, orgasmos, deslumbramentos. A busca pelas alturas dos abismos e olhar para o fundo das coisas. Os que estão sob contágio apresentam um padrão hormonal e psíquico mas com reações das mais diversas. Como as causas. Muito já foi inventariado e catalogado, e ainda será por ser o individuo mais novo o extremo da potencialidade de sua espécie. Fortalece se saber fraco frente ao outro. Pulsar descompassado buscando ritmo de vida que suspire, espreguice e sinta a força de brotar que é o abraço amoroso do sol. É o que faz pensamento buscar explicação porque a tudo se complica se difícil já é a opção de se cumprir. É engolir o outro, ruminar o outro, vomitar o eu e, junto, a ilusão. A desilusão é presente como casulo rompido. A paz do mandruvá.

sábado, 13 de junho de 2009

E o que mais senão o já conhecido e vivido poderia ser tão forte e me tirar do em que me agarro e me mantenho atada como sina e profecia? E dos oráculos, nenhum teve ainda a potência de uma voz infantil que disse, quero esse. Esse não pode? Fico sem nenhum porque não quero o que não quer o meu querer. E assim é. O desejo da voz. Aquela cansada e que se oferece em sacrifício e oferenda. A que escorre como vida, dor e veneno, remédio e cura. A que empurra de barranco em meio à chuva que a tudo dissolve e faz de todos terra de ser coisa. A voz que torna o ouvido rio livre de represas, que corre e leva em sua força o desejo de mais. E de mar. A voz que me livra de mim e do que fui. A voz que me faz sincera e aberta ao amor e ao abandono e, de ambos, ciente da dimensão e do limite.

E inevitável como o fim é o otimismo que me enfastia. O mundo seria um lugar melhor. Sinto palpitarem em mim as bem-aventuranças. Cada homem seria livre e sua descendência seu sonho e seu erro. E o último de nós resgatará o primeiro.

Até amanhã

Não havia reparado antes. Em suas despedias noturnas se comprometia com a vida.

Como nos gatos, o desejo, se despertado, não conhece pudor ou arrependimento. E nem morte o deteria. Nasceu e para isso vivia. Dormia melhor.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Entre os sentidos de broxar

na dúvida, não prossiga.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Por ser filha de Iansã

amava tempestades em copos d’água.

E começo por você. Pelo morto indesejado, com parêntesis e notas de rodapé, como esse intervalo entre o meu corpo e o seu. Geo, metrias e grafias equivocadas.

Boa Noite

O encontro com a morte havia sido anfitrionado pelos marimbondos, caçador ou cavalo.

Chegaria na terceira ferroada.

Ou na fumaça que salva.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

E se é assim, que seja. Até que se encerre o ciclo. E me lembro do que em suas máscaras não gosto, algumas brilham demais, outras sorriem demais e tantas são bobas demais. Fica sempre ao lado o bom amigo clichê. O único que cumpre a promessa e nos acompanha, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. Eu, tão habituada ao silêncio que falo. E quando me apiedo dos seus ouvidos, grito. E muito tenho gritado com meus silêncios e, embora tanto queira, nada peço, de tanto que já tenho disputando os olhos e a vontade. E os ouvidos. E a pele. Gostos e cheiros. Porque aprendi a agonia de meu pai ao ser ignorado: O pior que tem é chamar pessoa e ela não responder, tá me ouvindo? Ouvi. E não pediria que fizesse minhas vontades conforme as suas e nem que ficasse ou me fizesse feliz, o que sei ser com hormônios e pensamentos. Falta o discernimento de que acontecimentos felizes são os que acontecem, infelizes todos podem ser, mesmo os pobres e os sem vaidade e feliz não é o que vem de você, mas o que me atinge quando estou ao seu lado. Esse lugar. Nenhum outro pode ser alcançado além do que se ponha o pé. E o corpo, prestes ao florir.

E ainda faltaria dizer que não há arrependimento. O peso nos músculos é pelo cansaço de viver ao prestes do eu. Não seria possível desver e o visto já era em mim e pousaria sempre os olhos nesses sustos de pura beleza e me alegraria com eles, habituada à taquicardia. E era isso o que movia a fuga, o susto. A suspensão em meio aos meios de não se perder no que foi vivido e, embora acompanhando o movimento da terra, buscar as frestas e, a cada instante, recuar a cadeira rebuscando uma cor irrepetida. Falta ar e não o deve a voz. Assim faz a outra, a que reivindica o direito de perder e, diante dos omissos, vomita. Usaria drogas se as entregassem sem taxas em sua região e, mesmo gostando de sexo, tinha muita preguiça. Poucos sabem, era ela quem poderia rasgar fotos, apagar rastros e fingir que, dali em diante, seria somente ela, sem se encobrir por nenhuma sombra do que já passou. O tempo medido por vento, essa calma veloz que carrega os leves e que a todos deixa.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

E eu, que sequer sei empregar vírgulas e explicar a relação dos meus períodos, sempre compostos, falo: há falta de sentido nas palavras, essas baratinadas.

Pequeno tratado sobre os olhos

E tudo o que resta é a loucura. Porque é ela a lógica intrínseca do mundo e do que acima e abaixo dele existe e que me chega por eles. E eles pedem palavras e se entediam com as legendas, de tão saturados de cor e movimento e espera. E não ouvem. E por isso amam as pálpebras. E embora cerrados, devastam o mundo sem pudor ou piedade, por mim ou por todos os outros. E me torno gentil. Porque em todos vejo o medo e a desconfiança de que o mundo não seja tão bonito quanto parece. Tesouras permitem que as pessoas sejam retiradas das paisagens sem que se retirem suas bordas e seus vazios. E dos afetos, tudo o que resta, é a loucura.

O que é?

É sentir. É o que faz com que seja cada fibra de músculo, cada gota que areja e tudo o que tendo entrado pela boca, dela sairia, permitindo ser entre os que vivem. E tendo a vista embaçada pela transparência, posso ver melhor o seu rosto e noto as marcas das diversas circunstâncias em que, por desejar seu corpo, recusei seu amor. E vejo os olhos dos que foram atingidos pela flecha envenenada, a que abre o ferimento de não poder nunca mais duvidar do amor porque viu em seus braços a pequena dor, acarinhada para adormecer, protegida do tempo. Decerto seria bem educada.

O mundo é o mesmo pra todos. O conhecimento mais sofisticado sobre os homens sempre é obtido graças à observação de animais e insetos. E talvez muito se soubesse, se também observado, além de como reagem às nossas dores e misérias, o relacionamento com o demais. Medo, fome, sede ou dor não diminuem a curiosidade sobre o prazer a ser obtido na relação com o que há em volta.

Sobre a vida e hábitos de gatos e gentes

Gatos são pessoas melhores.

Objeto de desejo

O presente esperado para os quinze anos, para as núpcias consigo mesma, porque símbolo de poder é mesmo liqüidificador. Multiprocessador é somente um artifício tecnológico. O liqüidificador é pioneiro. E com a massa do igual de tudo o que era um entre outros, junta e torna bebível o diferente. Poderoso liqüidificou meus pensamentos, meus sentimentos sólidos.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Dote

Ao homem escolhido é oferecida a recompensa de tesouro acumulado em muitas vidas. Areia no vento, nódoas que restaram do que foi doce e que ainda escorre das mãos, gatos e sua liberdade, um pouco de música, vinho, e alguns livros. E a alma. O corpo acompanha.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

A mancha

E novamente ele volta. O homem da bermuda verde e dos olhos que me atingiram enquanto evitavam o asfalto a que iriam de encontro. Ele volta com o asfalto e seus pequenos rios vermelhos. E de novo é ele, o homem, tão forte, tão submisso às vontades, tão perecível. O homem que não existe mais e ainda atrapalha o trânsito.

Transito entre os lugares e os modos de escrever e me pergunto se são os estiles ou o roçar dos dedos o que deixa marcas. Me queimo e, no calor das mãos, tudo começa. E por tanto apreciar a morfologia das coisas elas acabam por ter sentido e um como fazer. Sempre soube que fumar era burrice tão grande quanto se apaixonar, mas mesmo tendo deixado os templos, ainda restavam os ritos, as minúcias de um eu esmagado pelo tudo, que conhece o próprio peso e flutua, por ser nada. O medo do fogo é porque sempre fui água parada, lagoa em que os que amei se afogaram, ainda no raso. E a doçura de neblina com espreguiçar do sol. Mas o agora era a seca, um evaporar para, na última gota, ser mar.

domingo, 17 de maio de 2009

O grito

E, mais do que a matéria perecível, sou o meu desejo de ser além do barro de que fui feita. Peça sem assinatura, da descendência dos bastardos, dos exilados e dos apatriados. E mulher.

Vario os tipos de letras porque a escrita não varia. E a moça ainda era ela, aquela que há muito havia deixado de ser, a que, por suas próprias mãos e vontade se fez corroer pela certeza de que de novo iria acontecer. E seria pouca a fagulha para acender o sol guardado no peito e que fazia com que se lançasse liquida ao se conduzir junto à fluidez das pedras. Lenta e determinada, seguindo o girar do mundo.

Respirava com fome o mundo. Na imobilidade adivinhava parentesco com vento, reconhecida a força de fazer e desfazer marés e, da aguinha nascente, surgiam os mares que inundavam e apagavam todo o resto. Da epidemia de dengue restaram a mulher parida e o pequeno homem, insaciável. E uma tarde, também de sábado, em que adormeceram juntos, consolados pela exaustão das fomes não saciadas. Quando aqui chegaram sabiam que seriam vitimados pelos mesmos males que seus antepassados haviam trazido. Mostravam nos olhos a consciência e se nomearem em sonho a quem pudesse reconhecer o sopro em ferida, afago de deus ou de mãe. Sabiam, já, todas as coisas que lhes seriam omitidas.

Comecei pela etiqueta, com data de fabricação e sem validade. Um homem que amei sentiu desconforto tal e qual e, o meu, ia no além do aquém já que sou uma tresloucada consumista. Coisas de mulheres que gostam de ser possuídas. Sempre tropeço em poemas e depois de um tombo, dei de cara com outro numa vitrine, ao lado dos sutiãs e da maquiagem. E depois me apaixonei por outro. Ode triunfal em meus ouvidos sua voz de maciez de apaziguar concretudes e engrenagens. Minha tecnologia parou com os moinhos e o cavaleiro que me chamava por nome outro. Gosto dos homens magros e frágeis. São os mais fortes. Como o cheiro da cebola e os canalhas. Compro coisas que ficam escondidas de mim, jogadas em gavetas e armários, estragadas pelo excesso de proximidade. Bom que o coração saiba melhor que amores escolher. Procuro as agulhas de tricô e imito minha avó, à espera que alguém retorne de onde ninguém vem. E me acabo tecendo princípios.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Outra Gabriela, e também cravo e canela. A que todas as bonecas foram ela e volta, por causa da gata que abandonei, e de novo, pela outra, a de que matei os filhotes na tentativa de os fazer viver.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

O viu passando, junto ao outro, o primeiro. Volta por um franzir de nariz. Seria essa a sua voz? Sentiu ciúme da mulher que estava ao seu lado naquela foto, a irmã. A segurança que encontrava nela, o que nenhum homem alcança nas profundidades de nenhuma mulher. A terra que acolhe a semente sem recusar as marcas do processo de se fazer. E com afetuoso interesse por saber as belezas e os gostos que guardam. Havia ali o brilho do que torna possível adormecer segurando as mãos, dividir a mesma cama e a intimidade do que é. De tudo o que amedronta em viver com outra pessoa, o desafio é dormir junto. Mencionou certa vez sobre o desprezo que alguns dos habitantes dessa terra fria dispensam às teorias dos que só pensam em brincar. Mas foi você quem ficou acordado. Agora canta o homem que tornou possívil a palavra tropicaliente. Parecia um bom adjetivo. Sempre canta. O recusar da mão é tão covarde quanto observar o sonhar do outro e desejar seu sonho sem coragem para sonhar.

E o que sou senão essa página em branco? Doem mais as pessoas porque os bichos usam as unhas e os dentes para delimitar o bicho que fala. Quem ama cactos sabe de seus espinhos e aceita a intenção de ferir e a pega nos braços, suja de sangue e fezes, e permite que escreva ali, com seus dentes, a dor das feridas e dos olhos onde brilhava a vergonha do desejo de fugir e não passar por esse caminho. E por isso as pessoas doem. Pelas páginas em branco.

sábado, 25 de abril de 2009

Aos poucos se vão as partes inteiras de mim, preservadas em bordados inacabados, no tecer sem fim do que nunca termina e nesta letra, a que tanto desejei possuir. E agora que acendo essas luzes e suas brasas, ouço a voz da mulher forte e que canta macio a dor do amor. E volto a pensar em você. Há duas noites o encontrei e ouvi sua voz. E também houveram pensamentos sobre o modo como cada um procura organizar o mundo, e cigarros, e música. Tímida, embora ousada e firme. E leve. E de uma doçura tão grande quanto a arrogância, o olhar benevolente. E esse depois de você que veio até mim é o seu antes, aquele em que eu teria sido, gema de ovos de chocolate, combustível para a viagem ao estrangeiro. Mas o olhar era outro, ainda não sabido, não compreendido, era outro. Aproveito o tempo para entender o que em você fez brotar o que de mais vicejante, a rosa, que já houve em mim. Todos os telhados eram jardins. Que força determinou que assim fosse? A ausência só existiu porque foi vista.

O nome dele

Vasculho as pastas que há muito deveria ter organizado. Porque o que mais pode fazer o olvido? E como se poderia esquecer de fazer o que foi esquecido? Busco o reconhecimento, o resgate de mim tentando antipatizar com Caetano Veloso. E o problema de errar é que sei escrever. Conheço as regras e acredito que se submeter é o desejo de seguir. Porque o problema das coisas é que elas trazem junto pessoas, onde o mínimo é tudo, esses canteiros onde tudo brotava e que agora é guardado pelos cactos. Porque às vezes só nos resta buscar explicações por personagens de seriados, um possível. Como o programa pirateado recomendando o uso de crases e um devido uso de se, esse acaso que nos acontece. E a diferença é que agora já não poderia rezar pela minha morte. Como poderiam lhe dar a única coisa realmente dada pela própria vida? Organizo as pastas que tornaram possível suster o impulso de chegar lá, na época em que rezava rosários pedindo o encontro e o silêncio, o silêncio. E por isso ligava o rádio e recebia o gosto que era lavar e passar o vestir das coisas. Calava as inquietações e os ouvia. E que maior proximidade e poder tem esse Deus que me leva em si? Não sei. Eu o chamo Música.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O prazer que era lavar, secar e encerar a garagem e a varanda daquela casa que embora fosse pequena me parecia enorme e que guardava ninhos e minha vontade de amar alguém. Eu, que tanto havia amado. Restava daquilo, em forma de coração, uma bexiga vazia. Como os espaços, que ainda tenho e onde coloco tudo. Tenho cabelos de ser como o jogador de basquete do desenho animado. O desejei ver, em companhia do padrinho, saber se aqueles cabelos eram para guardar. Na eminência de raspá-los, mais uma vez, esse sentir cheio de vírgulas e nenhum sentido. Sabia que era um deles mesmo quando desejou ser outro, o silêncio que fui por não ter palavra de dizer.

Um deles, a poucos instantes, urinava em frente de mim. E, enquanto fumo e bebo, as coisas que dizem bichinhos-voadores-que-acendem, brilham em volta deste lugar. Há tanto pela frente, frenéticos e falantes e, ai, se apagam. Porque o mar não mostra aos meus olhos tudo o que guarda. Guarda, como o tudo mais, essa necessidade de canto que é roçar de pele, violão encostado ao peito que diz, com a ajuda das mãos, o que a palavra esqueceu de dizer. Um brilho a se ver. A ser. Porque também me faço no susto, embora saiba que tudo acontece. E o que poderia contar de tudo? Havia, sempre, um canto.

sábado, 18 de abril de 2009

Passional?

E mais uma vez penso nela, a que me é e que me ensina do não saber de si. Duas vezes aconteceu o sol, chegada e partida. E hoje aconteceram os pés de café, frutos maduros prometendo gosto. E, com o cheiro adivinhado, o que me invade é a paixão verdadeira, a paixão do que trai, porque, o traído, só se deixa. Para a fidelidade nem amor gasta, que se pergunte aos cães. Mas para trair é necessário paixão. Só os apaixonados traem em verdade. E em verdade digo, quem trai morre e ressuscita duas vezes.

sábado, 4 de abril de 2009

Brincando com Um Som

Volta à disposição dos 3 anos de idade. E por isso ser ponte, porque cri não haver mal algum em que as pessoas sejam encantadoras. Um olhar lúcido e leve explicando o mundo, esse só isso mesmo com tudo isso dentro. Ambiciono o desumano e faço reformas nas grafias das coisas.

Campari

Gostaria, imensamente, de ter mais talento para o mal. Habilidades, todos temos. E o talento diz da qualidade do prazer proporcionado. Uns gostam, outros não.

terça-feira, 31 de março de 2009

Espana-dor

Hoje foi um dia de pés agitados e nervosos, uma sede de caminho, de rumo, de um que fazer, um que buscar. Me volta à lembrança a necessidade de esquecer e um sorriso dado por olhos que acenderam o ver. E também o resultado do exame de sangue. Positivo ou negativo que é bom? Viveria com isso, morto ou não. E penso na crueldade que é a liberdade de fazer escolhas. Liberdade é ter tudo, é ser tudo, de tão pequeno, a mínima coisa que em tudo se encontra. Poeira.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Perdida é a conta das coisas que sei fazer. Outras tantas posso mas não gostaria e, outras, gostaria, mas não sei como. E as deixo como uma tarde de calor em que tudo pode acontecer. E em suspensão percebo que, se me estranho é porque não sou e minhas mãos, decepadas por se recusarem a edificar meus sonhos, podem ser perdoadas. As coisas feitas pelos homens duram tanto quanto eles.

terça-feira, 24 de março de 2009

A agonia que sinto agora remete ao medo daquelas noites em que aguardava os monstros que certamente me visitariam. É a agonia daquelas tardes sem lugar de esconder e em que observava a doença lhe comer o corpo. Quanto tempo duraria? Pouco restava de matéria e sabia bem a dor da fome, ao ponto de ignorá-la, e também sabia que o que a mataria era a escassez de sonhos, e restavam poucos, colhidos naquele quintal. A agonia dos despejados, sem pouso e sem sossego em si mesmos. A agonia dos que buscam cavernas e sonhos de anos luz.

Sempre aceitei de má vontade a meia verdade de que água não tem cheiro. O nariz adivinha chuva, mar, moringa, cachoeira, córrego e canal. Entendi mais tarde que o cheiro é do que guarda. Uma verdade inteira.

domingo, 22 de março de 2009

sábado, 21 de março de 2009

Coisas de Pessoas

E ali estava: "O coração, se pudesse pensar, pararia. Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo.(...)" Alguém leu, a diligência do abismo.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Risco de vida

E nada do que vive por minha vontade e força morre. Porque a morte é o desejo da vida e atua sobre tudo e de mim nada pede ou precisa. E eu, também feita por ela, como as baratas e as formigas, sou toda um esforço de existência. E tudo o que nasce partilha dos mesmos desafios e o risco é viver. A morte somente aguarda, definitiva e certa.